COANDO MOSQUITO E ENGOLINDO CAMELO
O título em destaque é uma declaração de Jesus, endereçada aos fariseus (Mt 23.24). Valho-me dessa figura de linguagem usada por Jesus para descrever a religiosidade confusa, difusa e defeituosa do povo de Deus, no final do período dos Juízes. Este livro da Bíblia descreve o período mais turbulento e instável de Israel. Foram mais de trezentos anos de crises medonhas, quando o povo de Deus viveu numa espécie de gangorra espiritual, sob a opressão dos inimigos ao redor.
Nos últimos cinco capítulos do livro de Juízes, não havia mais ataques externos. Cessaram as invasões inimigas. Israel tornou-se o seu maior problema, o seu mais perigoso inimigo. O povo se uniu como um só homem não para combater os adversários ao redor, mas para ferir uns aos outros, numa guerra fratricida. A religiosidade tornou-se sincrética. O culto divino foi corrompido. Misturaram idolatria com devoção ao Senhor. Perderam a sacralidade da vida, da família, do sacerdócio e do culto. Destaco aqui alguns exemplos:
Em primeiro lugar, a paganização do culto. No capítulo 17, vemos a história de Mica, o homem que roubou sua mãe, e a mãe que roubou a Deus. Parte do dinheiro do roubo devolvido foi empregado para fazer uma imagem de escultura, com o propósito de adorar ao Senhor, num flagrante desrespeito ao segundo mandamento da lei. Essa família religiosa, porém, idólatra, constituiu um dos filhos de Mica para o sacerdócio num templo familiar, para oficiar um culto pagão. Muita religiosidade, mas nenhuma obediência. Muito ritual, mas nenhuma fidelidade. Muita aparência de piedade, mas nenhuma piedade verdadeira.
Em segundo lugar, a comercialização da vocação sagrada. No mesmo capítulo 17, o levita Jônatas, da família de Moisés, saiu de Belém rumo ao norte e foi parar na casa de Mica. Este, sabendo que Jônatas era levita, contratou-o como um capelão familiar, para liderar o culto no santuário pagão que tinha em sua casa. Esse levita, sem qualquer escrúpulo, vendeu sua consciência, transigiu com a santidade de sua vocação, e por dinheiro, tornou-se sacerdote de um culto idólatra. Mais tarde, membros da tribo de Dã, roubam os ídolos da casa de Mica e contratam o levita Jônatas, oferecendo-lhes maiores vantagens. Esse levita é um religioso que se deixa comprar. Ele mercadeja sua vocação. Trabalha por lucro.
Em terceiro lugar, o desrespeito aos mais vulneráveis. No capítulo 19, outro levita que morava em Efraim, se envolve com uma mulher de Belém, fazendo dela sua concubina. Esta o abandona e retorna à casa de seu pai. O levita, meses depois, vai a Belém para tomar de volta a sua mulher. Ao retornar à terra de Efraim, enfrenta uma situação adversa em Gibeá. Os filhos de Belial daquela cidade quiseram abusar sexualmente dele. O levita entrega sua mulher aos homens depravados da cidade. Esses monstros celerados abusam da mulher num estupro coletivo a noite toda, enquanto o levita dormia em vez de defendê-la. No dia seguinte, ao levantar-se, a mulher estava caída à porta da casa. Ele a chamou, mas ela não respondeu. Talvez já estivesse morta. Colocou-a sobre o jumento e partiu para sua terra, mais de cem quilômetros rumo ao norte. Ao chegar, ele que havia despeitado sua mulher em vida, desrespeita o corpo dela depois da morte. O levita esquarteja o corpo da mulher e o divide em doze pedaços e envia um pedaço a cada tribo de Israel. Tudo isso, com o propósito de convocar o povo para uma guerra civil. Ao dar um relatório para o povo que atendeu ao seu chamado, fez-se de vítima e escondeu sua atitude covarde de entregar sua mulher nas mãos dos abusadores. Em vez de proteger sua mulher, entregou-a à morte. Sua religião era apenas de fachada. Sua falta de caráter relevou de forma contundente sua apostasia espiritual e sua deformidade moral.
Em quarto lugar, a atrocidade ancorada por um legalismo tosco. O povo reuniu-se como um só homem para declarar guerra contra a tribo de Benjamim e varrer do mapa a cidade de Gibeá. Para defender a honra da concubina de Belém, estavam dispostos a matar homens, mulheres de crianças de Gibeá. Depois de cometerem uma chacina, usaram mecanismos indecentes e cruéis para arranjar mulheres para os seiscentos homens benjamitas remanescentes, uma vez que tinham jurado que não dariam suas filhas aos benjamitas. Para não quebrar o voto tolo que fizeram, dispuseram-se a exterminar homens, mulheres e crianças de Jabes-Gileade e sequestrar quatrocentas virgens. Para atender à demanda conjugal dos restantes duzentos benjamitas, aconselharam os benjamitas a sequestrarem as jovens em Belém. Tudo isso, por causa do legalismo religioso, do cumprimento de ritos sagrados desprovidos de verdade e sem aprovação de Deus. Resta claro afirmar que esses indivíduos coaram mosquito e engoliram camelo.
Rev. Hernandes Dias Lopes
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